MANUEL MARGARIDO


«Não quero saber dos detalhes, da teia de desentendimentos, de ressentimentos, de zangas, que deram origem à suspensão preventiva de funções e instauração de um processo disciplinar tendo em vista ‘o despedimento com justa causa’ da Directora da revista Colóquio/Letras, Joana Morais Varela.

Antes quisesse. Antes me embrenhasse nesses meandros, para de novo encontrar motivos de vergonha pelo meu país, triste forma de estar alerta. É um sentimento estranho este: doer-nos de vergonha uma entidade abstracta, um país. Um sentimento absurdo, também: porque, se algum motivo de orgulho nos redimia da triste vida cultural portuguesa, ele tinha casa e morada na Fundação Gulbenkian. Em outros lugares, decerto. Mas era aqui o seu castelo. Uma torre alumiada em pleno turvo charco salazarista.

Na Fundação fazia-se a única revista literária inquestionável em Portugal. Abdique-se dos adjectivos, por ser substantivo o assunto: não conheço nenhum paralelo editorial comparável à Colóquio/Letras. Em lugar nenhum em civilizadíssimas nações. Tenho, aqui atrás de mim, as 14 caixas da Colóquio (1959-72), publicadas antes da cisão que deu origem à defunta Colóquio/Artes e à agora condenada Colóquio/Letras, também ela atrás de mim. E posso avaliar. Posso e devo dizer que era com grande alegria que o meu tio, João Bação Leal, (pai do José Bação Leal, poeta de quem um dia falarei) a comprava, lia cuidadosamente — e com cuidado — para não estragar. (Já quando só era Colóquio se lhe acusava o ‘luxo’, as impressões a cores especiais, como o dourado, uma luxúria numa revista, os tempos convidavam a mostrar austeridade). Do meu tio herdei a Colóquio. Eu continuei com a Colóquio/Letras. Porque me ajudava a perceber o essencial: a literatura como um território outro, pregnado da experiência humana nas suas infinitas, incomensuráveis, improváveis e maravilhosas expressões.

A Colóquio/Letras era uma revista desmesuradamente ‘luxuosa’? Era, claro que era. Tinha de ser! Porque nada naquele ‘luxo’ se revelava deslocado ou gratuito; correspondia integralmente à liberdade editorial, ao crescente impulso para os números temáticos que faziam literalmente conhecer de novo autores e passar a amá-los só porque assim nos eram apresentados; conjugava-se com o ‘luxo’ de um editing anormalmente rigoroso, sem tradição no nosso país.

À minha frente está o duplo número 145/146, Julho-Dezembro 1997. Infinito Pessoal • homenagem a David Mourão-Ferreira 1927-1996. [v. imagem ao alto] Eram precisas fotografias tão boas? Eram necessários extra-textos tão raros, perfeitos, caros? Tantos papéis diferentes? Tão boa impressão e acabamento? Era indispensável que até a Bibliografia Activa do autor fosse ilustrada? Era! Por muito que alguém gostasse do escritor, aquela revista permitia ‘estar com ele’. Conhecer-lhe o corpo. A mão. A caligrafia. Os olhos cansados de bondade. Cansados de alegria.

Ah, mas em Portugal a competência também cansa. Com um processo disciplinar e uma ‘justa causa’ despede-se a competência. Essa raridade, que deve andar com trela. Essa lebre a abater.»

Fonte: As folhas ardem